Alessandra Valle conta sobre uma mãe que desapareceu numa viagem repentina. Eu, Luiz Primati, trago a quinta parte de um conto de 2018, publicado inicialmente no Facebook em partes e depois entrou para o livro: "Velhas Histórias Urbanas" que foi baseado num fato. O nome do conto é "A Emparedada da Rua Nova". Ricardo dos Reis nos traz mais um conto "Quem é o pai dos filhos da Dona Josefa?".
Esse caderno tem a intenção de divertir os nossos leitores que, sempre acabam tirando algum ensinamento para suas vidas.
Leia, Reflita, Comente!
TÃO PERTO, MAS DISTANTE
por Alessandra Valle
Fazer mudanças envolve muito preparo físico e emocional. Em se tratando de mudança de endereço residencial o desgaste pode ser ainda maior, pois mudar a rotina, conhecer novos vizinhos e se enturmar são tarefas difíceis.
Naquela semana estávamos de mudança, em muitos aspectos. A sede da delegacia de “Desaparecidos” iria mudar de endereço, uma nova equipe de policiais iria trabalhar conosco e todos precisavam ser orientados quanto à rotina diferenciada e ao atendimento especializado a familiares de pessoas desaparecidas.
Em meio a objetos e caixas precisávamos continuar a fazer registros policiais, pois familiares angustiados aportavam.
Foi o caso de uma mulher que estava à procura da mãe que morava no mesmo quintal, mas em casas distintas.
A moça disse não saber ao certo o dia do desaparecimento de sua genitora, pois me confessou que apesar de morarem tão perto estavam distantes emocionalmente uma da outra.
A comunicante disse ter rotina de trabalho intensa e costumava emendar dois plantões seguidos, pois era enfermeira em mais de um hospital. Disse ainda, que sabia que a mãe havia se aposentado recentemente por isso, pouco ou nada sabia sobre a nova rotina dela.
Muitas perguntas sobre a desaparecida ficaram sem resposta e aparentemente a filha parecia ser displicente ou insensível, mas não podemos nos distanciar do sentimento que a levou até a delegacia, este deve ser respeitado e a dor de um familiar pela ausência de seu familiar, não se mede, nem se questiona. A nós, policiais, cabe cumprir o dever e buscar o paradeiro da pessoa desaparecida.
Ao perguntarmos sobre amigos ou vizinhos mais próximos de sua mãe, a comunicante do desaparecimento se recordou de uma vizinha que costumava passar o dia na varanda de sua residência por isso, conhecia bem a rotina de todos na rua. Foi então que procuramos conversar com a vizinha e dela extrair informações sobre a desaparecida.
A vizinha sempre atenta nos trouxe a informação de que precisávamos para iniciar as buscas àquela mãe desaparecida:
— Há três dias, a vi saindo de casa levando uma grande mala e fiquei curiosa, por isso a perguntei para onde estava indo, mas ela se limitou a responder que iria aproveitar a aposentadoria. Eu deveria ter ficado feliz, afinal é uma vizinha que estimo, mas, na verdade, fiquei triste, pois ela não me contou qual era seu destino. Penso que ela não confia em mim, Sra. policial.
A partir de então, as diligências policiais foram em busca de informações nos aeroportos e rodoviárias da cidade do Rio de Janeiro em nome da desaparecida.
Para nossa surpresa, a desaparecida teve destino internacional, pois a resposta da Polícia Federal, nos informou que ela teve embarque, há três dias, do aeroporto internacional do Galeão com destino a Portugal, mais precisamente ao aeroporto da cidade do Porto.
A filha comunicante ficou alegre com a notícia e nos contou que o sonho de sua mãe sempre foi conhecer Portugal e poder morar lá quando se aposentasse.
— Ela merece ser feliz e quem sabe agora, distante, não ficaremos mais próximas? — desabafou a filha, referindo-se ao pouco contato e relacionamento que mantinha com a mãe.
Nos dias seguintes, a mudança de endereço da “Desaparecidos” ocorreu e foi bastante cansativa. Agora, funcionando em outro bairro, precisaremos nos adaptar à rotina e ao funcionamento do local, além de conhecer e nos bem relacionar com a vizinhança.
A EMPAREDADA DA RUA NOVA
por Luiz Primati
IG: @luizprimati
CAPÍTULO V — VOZES DO ALÉM
Naquela noite Matheus se propôs a contar tudo que acontecera em todos aqueles meses. Sugeriu de irem ao cais do porto comemorarem a sua volta.
— Matheus, não me leve a mal. Mas hoje gostaria de ficar aqui na minha casa. Sabe que lá no cais não conseguiremos conversar. Arriscamos encontrarmos muitas pessoas que virão falar comigo e perguntarão sobre Isabela e Sabrina. Ainda não estou preparado para eles.
— Relaxa homem. Entendo-te. Vamos tomar uma cerveja aqui mesmo. Eu preparo algo para comermos.
— Obrigado Matheus. Enquanto cozinha, vou tomar um banho. Estou fedendo — riu.
— Está mesmo. Seu porco — riram. Matheus foi para a cozinha. Pedro Paulo para o banho.
Os próximos dias seriam cheios de perguntas dos amigos e frequentadores do mercado. Iriam querer saber sobre Isabela e Sabrina e Pedro Paulo não gostaria de falar sobre o assunto. Aliás, nem de pensar sobre isso.
Se demorou embaixo do chuveiro. Não queria sair dali. Sentia estar lavando de seu corpo todos os pecados e até os podia vê-los sendo sugado pelo ralo do banheiro. Era muito reconfortante. Muito diferente dos banhos em Paris onde sempre eram rápidos e sem graça. Pedro Paulo nem se deu conta do tempo que estava sob as águas quando ouviu uma voz o chamar.
— Pedro Paulo, venha — falou alguém ao longe.
Ele não escutou direito, mas a voz o chamou novamente.
— Preciso de sua ajuda aqui. Depressa! — sussurrou a voz.
Era uma voz feminina. Parecia ser de Isabela. Imediatamente desligou o chuveiro e ficou atento. A voz não falou mais. Poderia ser imaginação de sua cabeça.
— Até que enfim você saiu do banho. Quase chamei o corpo de bombeiros para resgatá-lo — falou Matheus.
— Desculpe meu amigo. Precisava desse momento — Pedro Paulo terminou de enxugar os cabelos com uma toalha de rosto — demorei muito?
— Penso que uma meia hora. Mas relaxa. Deu tempo de eu terminar o nosso jantar. Se importa se nós comermos aqui na sala? Sinto-me mais à vontade.
— Claro que não. A casa é sua…
— Minha não. Sua, Pedro.
— Mas gostaria que fosse sua também. Continue a morar aqui comigo. Preciso de apoio nesse momento.
— Está bem. Posso ficar por uns dias até você se acostumar novamente.
Matheus preparou uma carne de sol por ser uma comida rápida de se fazer. Os dois se sentaram para comerem e conversarem. Matheus ofereceu uma cachaça. Pedro Paulo preferiu uma cerveja.
Após comerem até não mais aguentarem, Pedro Paulo foi o primeiro a falar.
— Matheus, preciso lhe falar sobre os pesadelos que ando tendo. — O amigo ficou apreensivo. — Não consigo tirar Isabela e Sabrina da cabeça e pensar sobre o que lhes aconteceu está me deixando maluco. As cenas ficam martelando na minha cabeça todas as noites. Não sei se fizemos a coisa certa…
— Ei, homem. Agora não é hora de arrependimentos. Você fez o que achava correto. — Matheus tentava consolá-lo.
— Eu tenho dúvidas se o que fiz foi ou não correto… precisava confessar para um padre — disse Pedro Paulo em tom de desespero.
— Um padre? Não temos um nessa cidade que seja confiável. Pode falar comigo sempre que precisar. Mas não conte a mais ninguém. Você sabe que não deve.
— Está bem, me desculpe. Às vezes, tenho essas recaídas. Por isso preciso de você aqui. Agora no banho pensei ter ouvido Isabela me chamando.
— Isabela? Impossível! Já vi que precisa realmente de mim. Eu vou ficar. Fique tranquilo. Mas mudando de assunto, me conte sobre Paris. Como são as francesas? Fogosas?
O resto da noite conversaram sobre sua viagem pela Europa. Matheus colocou Pedro Paulo à par de tudo. Foram dormir bem tarde naquela noite.
* * *
Pedro Paulo retomou os negócios. Lentamente foi respondendo às perguntas de um ou outro amigo, ou vizinho. Dizia sempre que Isabela e Sabrina retornariam em breve. Mas tudo mudou quando dona Elvira chegou.
— Olá! Boa tarde! Gostaria de falar com o proprietário da casa acima do mercado. O senhor sabe quem é? — disse uma senhora que aparentava seus 60 e poucos anos, diretamente para Pedro Paulo.
— Olá! Senhora. Posso saber seu nome? — disse Pedro Paulo gentilmente.
— Chamo-me Elvira. A bruxa do 71 — riu da própria piada. Pedro Paulo também riu.
— Sou Pedro Paulo. Dono do estabelecimento e também dono da casa sobre o mercado. Em que posso ajudá-la, dona Elvira?
— Ah! Senhor Pedro Paulo, preciso saber sobre a maternidade que tem por aqui…
— Maternidade? Como assim? — Pedro Paulo não estava entendendo nada que dona Elvira dizia.
— Toda noite, escuto as enfermeiras fazendo partos. As mulheres gemem a noite toda. Gostaria de saber onde fica a maternidade. Mudei-me para o prédio ao lado de seu comércio faz 2 meses. Mas nesses últimos meses, todas as semanas, escuto as enfermeiras fazendo partos. No início até ficava comovida em saber que uma nova vida estava chegando ao mundo, mas de um tempo para cá isso começou a me incomodar. Queria conhecer a maternidade.
— Senhora Elvira, o hospital mais próximo está a 1,5 km de distância. Acho difícil que ouça as enfermeiras fazendo partos. Exceto se o vento esteja soprando nessa direção… Mesmo assim, acho pouco provável.
— Senhor Pedro Paulo, eu não sei como o som chega até o meu apartamento, mas tenho certeza do que falo. Posso estar velha, mas não gagá — riu. Pedro Paulo também.
— Vou ficar atento, senhora.
— Então preste atenção. Amanhã, sexta, é o dia que mais ouço. Fique atento.
Dona Elvira agradeceu e se foi. Pedro Paulo ficou pensativo. Sexta-feira foi o dia em que tudo aconteceu. Seria possível que dona Elvira pudesse ouvir realmente as enfermeiras fazendo partos?
* * *
Finalmente chegou sexta-feira. Pedro Paulo ficou com as palavras de dona Elvira na cabeça. Iria prestar atenção. Matheus o convidou para sair. Ele preferiu ficar em casa. Não disse nada ao amigo, porém, queria comprovar o que ouvira da bruxa do 71. Riu sozinho ao lembrar da comparação.
A noite correu e nada de incomum aconteceu. Pedro Paulo se recolheu ao seu quarto e dormiu o sono dos justos. Nada de que ouvira de dona Elvira era verdade. Ela devia ser uma velha caduca — pensou. No entanto, exatamente as 3 da manhã, Pedro Paulo se levantou com o coração acelerado. Suava. O calor era insuportável. O ar-condicionado estava quebrado e esquecera de ligar o ventilador. Fez isso assim que acordou. Aproveitou e foi até a cozinha tomar um gole de água gelada.
Voltando ao quarto, se acomodou sobre o lençol e fechou aos olhos tentando retornar aos seus sonhos. E foi aí que ouviu um gemido de mulher. Abriu um olho. Depois o outro. Ficou com a mente ligada. Nada aconteceu. Voltou a fechar os olhos. Novamente o gemido de mulher. Logo em seguida podia ouvir uma voz feminina dizendo: “Força, você consegue. Expulse essa criança de dentro de você. Força!”.
Pedro Paulo saltou da cama assustado. Era a voz de Isabela. Os gemidos pareciam ser de Sabrina. Ficou em pânico, sem saber o que fazer. Correu até o quarto de Matheus.
— Acorde meu amigo. Acorde! — Pedro Paulo chacoalhava Matheus que dormia num sono profundo. Após alguns chacoalhões, Matheus despertou sem saber o que acontecia.
— Isso é um sonho? Diga que não é real… — A cabeça de Matheus ainda girava. Tomara todas naquela noite e o efeito do álcool, misturado com o sono o faziam delirar.
— Acorde homem de Deus. Você precisa me ajudar — gritou Pedro Paulo. As vozes de Isabela e gemidos de Sabrina ainda ecoavam pelos corredores. Pedro Paulo, não sabendo mais o que fazer, jogou um copo d’água no rosto de Matheus que imediatamente despertou.
— O que foi? O que aconteceu? Quer me afogar Pedro? Tá maluco? — Matheus despertou muito aborrecido com a água no rosto.
— Desculpe Matheus, mas você precisa me ajudar. Elas vieram se vingar de mim — dizia Pedro Paulo apavorado.
— Quem quer vingar-se de você? O que está falando?
— Isabela e Sabrina. Elas estão aqui… — Pedro Paulo falava e andava nervosamente de um lado para o outro.
— Calma homem. Deve ser um pesadelo. Tem que se acalmar. — Matheus tentava consolar o amigo.
— É um pesadelo sim, mas é real. Elas estão aqui…
— Aqui onde meu amigo? Está delirando?
Pedro Paulo abraçou o amigo e chorou copiosamente. Matheus, a princípio não soube como agir e gradualmente abraçou o amigo de volta o consolando.
— Acalme-se! Tudo vai dar certo…
Lentamente Pedro Paulo foi se controlando e parou de chorar. Matheus o convenceu de que era apenas um pesadelo. Mas de repente, as vozes voltaram com tudo.
— Força Sabrina. Você vai conseguir — dizia a voz de Isabela.
Pedro Paulo saltou assustado novamente. Matheus teve todos os pelos de seu corpo arrepiados. Sabia que não era um pesadelo. Era real.
— Está vendo Matheus. Elas estão aqui.
— Vamos manter a calma. Vamos rezar que tudo vai passar.
Pedro nem contestou e engatou um "Pai-Nosso" sem perder tempo. Ao final da oração tudo estava em silêncio. Ficou à espreita para ver se as vozes voltavam e nada mais aconteceu.
— Está vendo Pedro, tudo está normal agora. Nada vai te atingir — disse Matheus em tom apaziguador.
— Matheus, fizemos tudo errado. Elas estão aqui para se vingar. Temos que procurar a polícia.
— Endoidou de vez? Quer passar o resto de sua vida atrás das grades? Pediu que eu o ajudasse e assim o fiz. Mas não combinei de ser preso por você. Se quer acabar com sua vida, vá em frente, mas não me envolva.
— Me desculpe Matheus. A culpa me corrói. Sei que não estou pensando direito. Mas tem que me ajudar.
— Amanhã pensaremos em algo. Agora durma.
* * *
Matheus acordou porque o trabalho o chamava. Estava sem vontade. A cabeça pesava. Dentro dela parecia ter uma bateria de escola de samba. Abria um olho e doía todo o outro lado do rosto. Abria o outro e doía a parte de cima da cabeça. Se abria os dois parecia que um desenho animado descia uma porretada em sua caixola. Melhor voltar para a cama. Não conseguiria trabalhar. Depois de mais 15 minutos de cochilo, resolveu caminhar até a cozinha, com um olho semiaberto e engolir uma aspirina. Tomou bastante água e voltou para a cama. Depois de mais meia hora de cochilo, acordou e se levantou. A dor de cabeça havia melhorado. Precisava ir para a obra. Sabia que seus funcionários precisavam de alguém que os vigiasse.
Matheus tomou um café para ajudar na dor de cabeça. Saiu apressado e antes deu uma olhada no quarto de Pedro Paulo. Ele dormia pesado. Nem acordou o amigo. Tinha um gerente cuidando do mercado. Foi embora tranquilo.
Quando os ponteiros do relógio sofregamente passaram das 9h, Herculano entrou. Queria saber de Pedro Paulo. Marco, o gerente, informou que ele ainda não havia descido. Herculano mandou que o chamasse.
Timidamente Marco subiu até o quarto de Pedro Paulo e o chamou várias vezes. Era em tom baixo, de respeito. Pedro Paulo estava até roncando e nem ouvia os chamados de Marco. Ele desceu até o mercado e encarregou Jéssica dessa tarefa. Disse ser urgente e deveria acordar o senhor Pedro Paulo. Ela, contrariada, foi.
— Senhor Pedro… — Nada dele responder. Nem se mexeu. Ela ergueu o volume da voz. — Pedro Paulo? Acorde! — Ele até se remexeu na cama, mas nada de despertar. Jéssica, já apavorada e lembrando das ordens de Marco, falou em tom exageradamente alto. — Pedro Paulo, o senhor Herculano quer vê-lo. Acorde!
Pedro Paulo saltou da cama assustado. Olhava em torno tentando entender se era um sonho ou alguém estava ali gritando com ele. Após conseguir focar o vulto de Jéssica teve certeza de que estava acordado. Mas que diabos ela fazia ali?
— Minha nossa, Jéssica. O que você quer assim tão cedo?
— Me desculpe senhor Pedro, mas o senhor Marco pediu para lhe acordar. Seu sogro está lá embaixo, nervoso, querendo lhe falar. Parece apreensivo.
— Que horas são? — falou Pedro Paulo na esperança de ainda ser umas 6h da manhã.
— Agora são 9:15h.
— Meus Deus! Já? — Jéssica nem respondeu. — Diga a ele que em 15 minutos eu desço. Não diga que eu estava dormindo.
Pedro Paulo lavou o rosto, trocou de roupa e desceu com uma xícara de café na mão. Herculano, com toda a sua empáfia o aguardava.
— Até que enfim a bela adormecida apareceu…
— Desculpe senhor Herculano. Estava cuidando da contabilidade… — disfarçou Pedro Paulo. — Aceita um café?
— Muito obrigado, mas já tomei o meu desjejum às 6h da manhã. Daqui a pouco vou almoçar.
Pedro apenas ficou olhando para ele esperando que falasse.
— Vamos direto ao que interessa… Eu quero saber em que companhia aérea vocês viajaram. Chequei ontem no aeroporto e não tem registro de embarque delas e nem sua. Pode me dizer onde está minha filha e minha neta?
— Eu já contei ao senhor o que aconteceu. Fomos para a Europa de navio. Fizemos um cruzeiro. Compramos a passagem em cima da hora. Creio que não tenham registro do nosso embarque. Sabe como são esses cruzeiros… muito desorganizados… — Pedro Paulo tentava manter a calma. Sabia que Herculano não aceitaria essa resposta tão facilmente.
— Tolice! Eles têm que ter registro de todos os passageiros…
— Pode tentar descobrir se duvida da minha palavra. Mas o navio só retornará daqui a 3 meses.
— Pedro Paulo, seja lá o que tenha aprontado, vou descobrir.
Herculano saiu dali bufando de raiva. Pedro Paulo procurou manter a aparência calma. Por dentro estava apavorado. Ficou um pouco ali no balcão mantendo a pose enquanto Herculano saia por onde entrou. E foi nesse momento que dona Elvira chegou.
— Bom dia senhor Pedro. Como tem passado? — falou a boa velhinha calmamente.
— Estou muito bem. E a senhora? O que precisa hoje? Temos legumes e frutas frescas…
— Obrigado meu filho, mas não vim aqui para fazer compras. Vim falar sobre a maternidade…
Pedro Paulo ficou apreensivo. Sabia em seu íntimo que dona Elvira ouvira as vozes também e isso o apavorava.
— Eu ouvi essa noite as enfermeiras da maternidade fazendo outro parto. O senhor também ouviu? — Dona Elvira ficava esperando que Pedro Paulo confirmasse.
— Não, dona Elvira. Dormi como um anjo. — Pedro Paulo mentiu com a maior cara de pau.
— Engraçado isso… Eu tenho certeza de que não estou ficando biruta…
— Eu também tenho certeza que não, dona Elvira. Só estou dizendo que não ouvi nada.
— Está bem. Tenha um bom dia! — Dona Elvira fechou a cara, girou nos calcanhares e saiu. Pedro Paulo respirou aliviado. Agora tinha certeza de que o espírito de Isabela e Sabrina o assombravam.
Continua...
QUEM É O PAI DOS FILHOS DA DONA JOSEFA?
por Dos Reis
IG: @cronopolisbr
Em primeiro lugar, foi-nos dito, que Josefa queria ser livre e a liberdade tem um preço alto. Só é feliz quem paga esse preço.
Josefa levava um montão de gente em seu barraco e os tratava como reis e rainhas. O que Josefa fazia era nobre, embebia-nos com um café cheiroso e jogávamos conversa fora até a lua dobrar o céu, sentados na calçada. Josefa era empregada doméstica e tinha um filho: Rubinho. Todos na vizinhança gostavam de ajudar a pobre mulher. Era um pacote de arroz, um quilo de açúcar, enfim... Em contrapartida, todos se achavam no direito de se intrometer na vida da coitada.
― Deus que me livre, ninguém tem nada que ver com a minha vida ― dizia.
De fato, ninguém sabia duas coisas sobre Josefa: a primeira era onde e com quem ela trabalhava, era um segredo de Estado; e a segunda, e mais curiosa de todas, recaia sobre a paternidade de seu filho, Rubinho. Quem poderia ser o pai daquele menino? Josefa nunca foi vista sozinha com alguém, e seu tempo era extremamente limitado entre a sua casa e o seu trabalho.
― Nós fazemos o que fazemos por agir como nós próprios ― ela dizia, sem que ninguém entendesse.
Com todos nós buscando assunto para ter do que falar, construir um mistério sobre a identidade do pai de Rubinho foi muito fácil. E sempre que Josefa virava as costas o assunto imperava.
― Aposto que tem a ver com seu patrão. Nada justifica ela não dizer onde trabalha. O patrão deve ser o pai do menino.
― Eu acho que deve ser do Ivan. Ele quer traçar todo mundo, não perdoa ninguém.
― Se fosse do Ivan seria narigudo igual ao Cyrano de Bergerac.
― Desencana, não tenho nada com isso ― se defendeu Ivan. ― Um dia eu a vi conversando com o Seu Expedito. Ali tem alguma coisa.
― Mas ele é casado.
― Ué, e qual o problema?
― Deve ser do dono do imóvel, ele vai no barraco dela todo mês e seu aluguel é uma mixaria, muito menor do que o aluguel dos outros.
― Nada disso, ele aparece somente para cobrar o aluguel ― retrucaram. ― Ele só pensa em dinheiro. Se tivesse um filho com ela ao invés de receber o aluguel teria que pagar pensão. Esquece.
A herança genética de Rubinho foi vasculhada de fio a pavio em busca de indícios biológicos do seu verdadeiro pai.
― A cabeça dele é grandinha, você não acha?
― O que tem a ver o tamanho da cabeça?
― Sei lá. Pode ser uma pista. Ele pode ser filho do japonês.
― Eu?! ― assustou-se o japonês. ― E os olhos puxados?
― É! Ele não tem olhos puxados.
― É mesmo. Descarta o japonês.
A especulação aumentou para os tomadores de conta da vida dos outros. Homens e mulheres faziam apostas. Ao longo dos dias uma grande rede de pessoas se formou em torno do assunto. Suspeitos floresceram por todos os lados.
― Pode ser o entregador de gás.
― Não, ele é muito rápido.
― E daí?
― E daí que não dá tempo de trocar o gás e fazer um filho com tanta rapidez. Não funciona assim.
― Pode ser o mascate. Aquele cara é um xavequeiro de marca maior.
― Mulher é despesa, aquele libanês não quer saber de despesa. Mulher para ele tem que ser um grande negócio.
― Verdade ― concordaram os outros.
Os investigadores da vida de Josefa vasculharam muitas janelas em busca de pistas. O discurso gratuito e duradouro de que precisavam descobrir quem era o pai da criança servia, também, como um lembrete para o resto dos homens de que jogar limpo com as mulheres era uma tarefa importante naquele bairro.
― Que negócio é esse de engravidar uma mulher e sumir do mapa?
Segundo os vizinhos, o pai encontrava-se nessa posição porque nunca deu custódia de seu filho. Era preciso encontrar o vagabundo e deixá-lo a par de suas responsabilidades.
― Onde já se viu. A coitada trabalha o dia inteiro para sustentar o filho.
Mas eis que uma reviravolta tomou conta do caso, quando Josefa apareceu grávida do segundo filho.
― Mas Josefa. Cadê o pai dessa criança?
― Não interessa. Você não tem nada que ver com isso ― respondeu furiosa.
Os vizinhos se viram com um mistério ainda maior pela frente. Afinal, quem iria cuidar daqueles meninos? Rubinho já tinha que se virar sozinho em casa, com apenas cinco anos.
― Quem era o responsável em seguir a Josefa?
― Era eu ― respondeu Serginho.
― E o que aconteceu?
― Oras, depois que ela entra no ônibus eu não tenho mais nada a fazer.
― Desse jeito fica difícil.
Os vizinhos fizeram uma “vaca” gorda para o enxoval do bebê. Tinham a esperança de que o pai da criança, mais cedo ou mais tarde, aparecesse, ou que Josefa revelasse a sua identidade. Mas nada!
― Será que o pai dessa criança é o mesmo pai do Rubinho?
― Acho difícil, mas não impossível.
― Eu sei que é o patrão dela. Ele é o único que tem acesso e tempo.
― Mas a gente nem sabe onde ela trabalha.
― Por isso mesmo.
Josefa não era feia, nem bonita. E, ao invés de saltar em um relacionamento sério, preferia dar os seus perdidos. A família tinha ficado no Nordeste, mas os vizinhos a espreitavam noite e dia para que não caísse nas armadilhas da cidade grande.
― É recomendação dos pais ― dizia uma vizinha conhecida. ― Disseram para eu ficar de olho nela, para que ela não se perdesse.
Mas na cidade Josefa gozava de uma vida de liberdade, sem o pai para lhe ditar tudo. Achava que todo filho não devia ter pai, aquela figura opressora que sempre lhe cerceou a vida. Sentia nisso um prazer que era precioso demais para perder.
― Filho bom é filho sem pai ― dizia.
Mas os vizinhos pensavam diferente.
― Quem é o pai desses meninos, Josefa?
Mas Josefa compartilhava com os filhos a sua liberdade, em um lugar onde as pessoas normalmente não frequentam ou não são convidadas. Um lugar para poucos. Se falasse o nome do sujeito, ou dos sujeitos, tornaria o seu modo de vida acabado.
― O amor é de quem sente ― disse um dia. ― o amor é de quem dá.
― Eu, heim!? ― retrucou uma vizinha. ― E tu vai sair por aí dando amor pra todo mundo?
― Oxe. E o que é que tem?
A vizinha lhe olhou torto.
― Parece rapariga.
Para Josefa tudo o que realmente importava era se ela e os filhos estavam livres.
― Lembro-me que quando sai do Nordeste e vim para a cidade grande pensei "É isso. O que eu fizer irá viver para sempre". Enquanto os pobres de espírito brigam por vagas de estacionamento vou defender a minha centelha de vida, a minha fração de liberdade.
E ninguém nunca soube quem era o pai dos filhos da dona Josefa, nem o lugar onde ela labutava.
FIM
NOSSOS COLUNISTAS
Luiz Primati, Alessandra Valle e Ricardo dos Reis.
Belos contos!
Cada autor com suas particularidades.
Parabéns! Alessandra, Luiz e Ricardo.