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Foto do escritorLuiz Primati

CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 13 — 08/06/2022

Mais um conto de Carlos Palmito. Seres cruéis assistem a espetáculos copiados dos romanos. Jaulas, duelos, sangue. A vida por um fio, a morte a espreitar. Ali nada tem valor e tirar a vida de alguém é algo natural. Carlos nos surpreende com vastos personagens: fortes, autênticos, destemidos, desalmados, desumanos. Quando penso que nada mais há para mostrar, Carlos aparece com algo melhor que os anteriores. Não deixem de ler e, se não tiver tempo, escute no Spotify.


Leia, Reflita, Comente!



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O MONSTRO QUE VOCÊS CRIARAM


por Carlos Palmito


Parte 1 - Julgamento por fogo


Espiral de violência, demência, rancor, declínio, decadência, a mostra de até quão longe a alma humana consegue ir, deslocar-se para além dos limites impostos socialmente, quais as torturas e tormentos consegue infligir quando está oculta de julgamentos e dedos a apontar?


Assim era a masmorra, a expressão máxima da cidade da noite eterna, o cristal brilhante que atrai o que de pior existe nela, aqui todos eram livres, imaculados na mácula que causam, reis de espinhos tortuosos sem chagas nem cruzes.


Felício encontrava-se no seu local habitual, um camarim isolado no quarto piso inferior do seu império, na mão direita uma garrafa de vinho da qual bebia diretamente do gargalo, na esquerda um charuto enrolado das mais puras ervas, cada qual bebe da sua água, esta era a dele.


Contemplava a batalha titânica existente numa jaula de ferro, um elefante contra um rinoceronte, dois excrementos da metrópole, bêbados vagabundos num duelo onde o vencedor tem direito a uma garrafa de vinho azedo, o perdedor a um local nas planícies infernais, enterrado em esquecimento.


Pouco lhe importava o combate, assistia-o apenas como um monarca no circo romano, dai-lhes pão e circo, ele oferecia pecado e entretenimento, ofertava-lhes morte, dor e dormência, aplaudia quando tinha que aplaudir, e tentava manter-se entorpecido, o máximo que conseguisse, esquecer a sua própria existência.


Por vezes fechava os olhos, era raro, mas acontecia, adormecia por segundos que se perpetuavam na eternidade, a rosa-negra na sua mão direita enegrecia para além do negro, tornava-se uma ausência total de luz, e assim era ele também, um homem que perdeu a luz.


— Felício?


Desviou os olhos cinza para a origem da voz fina libertada pelas cordas vocais de um orangotango de cara retalhada, como era ridículo o gigante na voz de criança.


— Diz?


— A ‘rave’ deu merda, aquilo desmoronou.


Felício, rei e imperador da desolação fez um gesto de desinteresse, na jaula foram colocadas armas, um machado e uma espada, longa vida aos gladiadores alcoolizados e a sua assistência de merda.


O gigante afastou-se, junto da entrada ainda olhou para trás, para o seu soberano que bebia mais um trago da sua garrafa de uvas pisadas por virgens aladas da noite de decadente, sentia-o a cair cada vez mais fundo no isolamento, na loucura.


— Chefe?


— Que foi, Dino? — a irritação estava presente na voz, hoje era o aniversário, queria morrer, voltar para junto dela, mas estava enterrado aqui junto a merdas humanas.


— Consegui finalmente encontrar o Omar, está na cave do Centurino a apodrecer com as suas putas.


***


Chovia fazia semanas, o exterior da cabana era um charco divino onde as ninfas se banhavam desnudas em honra aos trovões, no fogo estava uma jarra de barro a aquecer água onde se iriam juntar umas ervas.


Deitados num colchão de palha manchado com o uso, suor e vestígios do amor que ali acontecia noite após noite, estava o homem de olhos cinza e a sua amante, amada, a única coisa boa no mundo terreno despojado de deuses.


Ia passando os dedos suavemente na pele da sua rainha, o farol da noite eterna onde desejava para sempre se perder, ser engolido por ela e permanecer no seu útero como um embrião.


— Não vás hoje, meu amor — a sua voz era melodia, harmonia entre a tempestade. — Fica comigo aqui deitado, fica em casa esta noite.


— Não posso, Diana — sentia-lhe o quente da derme entre os seus dedos, o perfume do cabelo negro que o embriagava, com ela o mundo parecia um local digno de se viver. — Precisam de mim hoje, temos um bosque para abater.


— Fica comigo — era imploração que estava no mel da sua voz. — Não agoiro nada de bom hoje.


Colocou-lhe um dedo nos lábios e beijou-lhe o ombro.


— Gostava de poder ficar, tu és o que de mais precioso existe neste planalto abandonado por entidades celestiais, mas esta noite não dá, o barco será lançado ao rio hoje, tenho que estar presente.


O silêncio apoderou-se do aposento, excetuando o crepitar do pinho na lareira, ela abraçou-o, sentiu-lhe os peitos duros pressionarem-se contra o seu, um trovão ribombou e um relâmpago iluminou o planalto, as ninfas dançavam com o vento, o odor da madeira adocicava a cabana.


— Promete-me que tens cuidado — uma lágrima brotou dos olhos castanhos dela, apertou ainda mais o corpo de Felício junto ao seu.


— Prometo!


***


— Ótimo, um problema a menos — retorquiu para o gigantesco ser junto da entrada. — E o Raúl?


Explodiram gritos na catacumba número quatro, o machado encontrou caminho até às costelas do alcoólico da espada, este jazia numa poça de sangue e mijo, olhos vítreos a fixarem as imensuráveis planícies de Hades.


— Esse está no hospital com a vaca dele.


— Conheces a casa dele? — indagou o monarca do submundo. — Aquela que fica no início da subida para o forte?


Uma briga teve início junto ao bar, um ser da miséria sem dinheiro para pagar a aposta perdida, o homem do lado de lá do balcão pegou na sua amante de metal e desferiu um golpe certeiro na cabeça do jogador que tombou no solo imundo das catacumbas.


Dois mortos por um, a senhora dos mortos estaria mais que saciada esta noite.


— Julgo que sei, chefe.


— Vai até lá e bota fogo naquilo tudo, tenho a certeza que o falso rececionista do Centurino entenderá o recado.


— A caminho, chefe.


***


Bebericou o último gole do chá, calçou as botas, beijou a sua amada contemplando-lhe o rosto com a mesma admiração que fazia desde os inícios, vinte anos atrás.


— Vou indo amor.


— Tem cuidado, os demónios dançam neste bosque faz muito tempo — o vento uivou entre as árvores, a chuva continuava, o rosto dela estava iluminado apenas pela luz da lareira, os olhos brilhavam. — E esta noite parecem agitados.


— Já ontem o estavam, e no dia anterior também.


— Não brinques Felício — tirou algo do vestido e entregou-lhe. — Um trevo para te dar sorte.

Ele não acreditava em sorte, apenas em deuses esfarrapados, monstros presos na sua mente que nunca mostrava a ninguém, aberrações que mantinha escondidas no mais negro abismo da sua alma.


Pegou-lhe, saiu, as gotas de chuva pareciam facas atiradas por um guerreiro da eternidade, as árvores oscilavam com a fúria de Éolo, uma dança macabra iluminada pelos relâmpagos que surgiam de quando aquando.


Demorou vinte minutos a chegar ao rio, onde archotes protegidos por guaritas de madeira iluminavam a noite tempestuosa, sentia os pés a atolar no lodo a cada passada e as adagas celestiais a cravarem-se gelidamente na pele.


— Felício, finalmente, pensámos que te tinhas perdido na penumbra da floresta.


— Isso nunca acontecerá, Salomão — riu-se o homem dos olhos cinza. — Podem até vendar-me que consigo percorrer o bosque de uma ponta à outra sem tropeçar em nada.


No lodaçal até às águas do rio existiam estacas a criarem um carreiro, o barco estava no topo, preso por escoras de madeira, a chuva não mostrava sinais de abrandar, esta seria a arca destes homens.


— Homens — o grito surgiu dos pulmões de Salomão, um bramo que se sobrepôs à tempestade. — Removam as escoras.


Os maços dos valentes criadores de arcas de Noé perdidas no olho da tempestade colidiram estrondosamente com a madeira, quebrando-a.


O barco oscilou, e começou a deslizar sobre os troncos, Felício ia acompanhando lateralmente, um novo trovão ribombou, e um clarão iluminou a noite.


Os rostos estavam fixos na marcha da embarcação, um dos rolos de madeira explodiu com o peso do animal de toneladas que sobre ele caminhava, projetando estilhaços de árvores mortas em todas as direções, a chuva parou nesse instante.


***


— E agora para vós, clientes desta taberna pecaminosa, temos inicio a mais um grandioso combate — o mestre de cerimónias mantinha-se no centro do ringue de ferro. — No lado direito temos o vencedor de ontem, vestido de branco, no esquerdo o de hoje, envergando negro.


A gritaria habitual teve início, incitação à violência, Felício sentia-se sonolento.


— Apostem nos vossos vivos, digam-nos quem morre!


Aplausos no degredo, gargalhadas dementes de seres que em si, perderam a humanidade.


***


Apenas sentiu um ardor no peito, olhou para lá, a água levava o sangue que jorrava de um estilhaço de madeira que ali se encontrava cravado, uma lança enviada por Noé, o Deus da barca infernal, caiu de joelhos e tombou lateralmente.


O barco continuou, impassível, os homens gritavam, a parte frontal da embarcação entrou no rio, a chuva voltou, Salomão ajoelhou-se ao lado de Felício, a examinar, sabia ser morte o que via.


— Fodasse! — olhou em redor. — Mais alguém ferido?


Ninguém, a fúria do Deus das embarcações diluviais embateu apenas no monstro de olhos cinzentos.


Ergueu-se, os homens todos estavam com os olhos colocados em Felício, dois relâmpagos atingiram a embarcação que se incendiou de imediato, mesmo no meio do dilúvio noturno, Salomão estava petrificado, Felício gemeu e arrancou o pedaço de morte do seu peito, o escarlate irrompeu de um peito perfurado.


Despiu as vestes, no peito tinha um buraco com abertura suficiente para passar um punho, do qual o sangue gorgolejava incessantemente.


***


Berros de ódio invadiam a masmorra, eram atiradas garrafas e copos contra as grades da jaula de ferro, cuspiam nos vagabundos que se encontravam parados nela.


A ousadia que estes despojos humanos a tresandar a fezes tinham para se recusarem a batalhar, a oferecer morte aos espetadores.


— Felício? — era o guarda-costas. — Que fazemos?


O homem da rosa negra levantou-se do seu trono de ferro.


— Eu trato disto — caminhou em direção à jaula dos gladiadores embriagados. — Já que não querem lutar um contra o outro — entrou no ringue. — Vão ter que combater contra mim.


Brindes e urras ressoaram na divisão, o bar ofereceu uma rodada, os vagabundos entreolharam-se, tinham consciência do desfecho da batalha.


— Se me conseguirem derrubar — ergueu os braços para a assistência — terão direito à liberdade — a isca estava lançada.


***


A chaga no peito começou a recuar, a fechar, os construtores de barcos estavam atónitos, olhos escancarados, a chuva parou por uma segunda vez na noite.


— Bruxaria! — a ferida era agora apenas uma cicatriz rosada, o próprio vento esqueceu-se de soprar, e a palavra era repetido num eco demente. — Bruxaria!


Salomão recuou, o barco ardia no rio como uma marcha fúnebre de um guerreiro viking, a mão esquerda dele tocou no cabo de um maço de ferro, no astro notavam-se bandos de aves, pelos guinchos seriam morcegos, ratazanas aladas.


— Bruxaria!


Ergueu o maço, um novo relâmpago incendiou a noite, o medo estava estampado na face rubra de todos os presentes.


Tentou ainda argumentar, mas nenhuma palavra eclodiu-lhe da garganta, foi atingido pela fúria férrea do maço, sentiu os ossos do crânio despedaçarem-se, uma massa viscosa escorrer-lhe para o rosto, a fiação da sua proteção neuronal.


***


O primeiro dos sem-abrigo atirou-se a ele de cabeça, Felício ergueu o joelho segundos antes de ser atingido no estômago pelo crânio oleoso a tresandar a suor, inundado de pulgas, acertando-lhe diretamente na cara, ouviu-se um estalido com o quebrar dos ossos nasais.


Um grunhido animalesco germinou das cordas vocais do ser miserável que derruiu no áspero chão de cimento. O homem dos olhos cinza pisou-lhe a cabeça sem piedade, os olhos emitiam fúria, a face nojo, os sentimentos que nutria pela sociedade, atirados na totalidade por aquele pedaço de merda.


O segundo vagabundo tentou fugir, trepar pelas grades de ferro, Felício puxou-o para baixo com a brutalidade de um orangotango, o bêbado ajoelhou-se pedindo piedade, uma faca caiu junto ao homem da rosa negra, apanhou-a devagar, viu refletir a sua alma na lâmina.


***


Acordou na noite seguinte, estava amarrado e amordaçado, nu na escuridão do bosque, sentia água gotejar, pouca, não tanto quanto o dilúvio das últimas semanas, ao seu lado esquerdo estava a sua amada nas mesmas condições dele.


— Bruxaria! — murmurava o vento. — Feitiçaria! — sussurrava a multidão que os cercava com archotes.


A seus pés estavam galhos do bosque, cheirava a azeite, tentou inutilmente gritar por cima da mordaça, mas apenas o vento e o medo se ouviam no bosque.


— O que fazemos aos bruxos?


Um burburinho surgiu e a pouco e pouco foi criando uma frase, ele sabia o que significava, olhou para o lado e tentou perder-se nas lágrimas da sua desnuda amada amordaçada e amarrada. Uma coruja piou ao longe, ali ao lado um lobo uivou em dor.


— Queimamos, que ardam nos infernos!


O archote incendiou o azeite, sentiu primariamente calor, depois dor e finalmente escuridão, sempre com os olhos presos no seu farol, porto de abrigo de um marujo em decadência.


***


Ergueu a mão e baixou repentinamente, a lâmina cravou-se no cocuruto do mendigo, o sangue escorreu-lhe para a face suja da imundice da cidade.


Com uma torção brusca quebrou a lâmina pelo punho, que atirou para o esquecimento.


— Que fazemos com os bruxos?


A assistência calou-se, os brindes e risadas pararam, o imperador da loucura falava em bruxos.


— Queimamos, que ardam nos infernos.


Saiu da jaula para o seu trono de solidão.


— Diana…


— Diga chefe? — o guarda-costas estava confuso, quem era Diana?


***


Demorou uma semana a acordar, estava deitado na cinza da fogueira que lhe consumiu as carnes, no alto uma lua cheia brilhava incomensuravelmente, a seu lado repousavam as cinzas da fogueira que lhe levou o amor, o crânio brilhava imaculadamente.


Um berro ressoou no plano existencial dele, uma lágrima percorreu-lhe o rosto, um lobo respondeu ao lamento, uma estrela morreu no firmamento, todos lhe sentiram a dor a pulsar, Gaia gritava com ele, as árvores agitavam-se ao sabor de um temporal inexistente.


— Salomão! — a dor da perca transmutou-se para ódio, selvajaria, desejo de carnificina que nunca lhe aflorara na alma.


Levantou-se, pegou nas ossadas daquela que amava, os ossos nos quais o rosto tivera sido esculpido e partiu em direção à cidade, sabia onde o encontrar.


***


O telefone tocou, olhou para os nove dígitos no visor, sabia quem era.


— Diz?


— Está feito Felício, a casa do homem do Centurino está em chamas.


Sorriu na amargura da sua alma, levantou a garrafa de tinto ao ar.


— Um brinde a ti.


Bebeu o conteúdo numa única golada.


***


Desde as cinzas até ao vilarejo demorou cinco minutos, correu nu pela floresta com a caveira a acompanhá-lo na mão direita, Gaia acompanhou-o e os morcegos voaram com ele.


Abriu as portas da taberna com a sola do pé, junto ao balcão estava a causa da sua dor, a mácula no coração que um dia haverá batido numa cadência ritmada no seu peito, as risadas notívagas calaram-se.


— Salomão!


O homem virou-se, construtor de barcos assassino de faróis, a lua brilhava, Felício saltou, qual felino, e cravou os dedos na garganta do carrasco, sentiu o calor da fogueira, uma alcateia uivou em conjunto, os dedos perfuraram a garganta, sentiu o sangue viscoso escorrer-lhe pelo braço direito.


Puxou com barbaridade, a mão direita latejou, as cordas vocais do perpetrador foram arrancadas do corpo, sentiu comichão a acompanhar o sangue que escorria pelo braço direito.


— O bruxo!


O sangue no braço transformou-se numa rosa, negra como o túmulo por descobrir de um deus egípcio, aprisionado numa pirâmide nos confins desérticos de um mundo desconhecido.

Sentiu uma pancada na cabeça e a luz sumiu.


***


Novo toque no telemóvel.


— Que foi agora?


— O gato está de volta ao campanário, Felício. Acho que a miúda regressará se não for hoje, amanhã.


— Mantém-te por perto, avisa-me quando ela chegar.


***


Não sabia por quanto tempo estivera apagado desta vez, encontrava-se numa cela sem janelas, sobre a cama repousava o crânio da sua esposa morta, a rosa continuava na sua mão, negra e gelada.


Tentou limpar, um esforço inútil, sentia-a queimar e gelar no mesmo espaço temporal, uma memória residual do nascer de um imperador.


— Que fazemos com ele?


A voz do exterior.


— Nada, já que não morre, fica aí, vamos embora.


— E água, comida?


— Os demónios não precisam, vamos embora desde local, dá-me calafrios.


Os passos afastaram-se, estava em quase solidão, não fosse o bater de asas que ouvia.


***


Levantou-se do seu trono ferrugento, ignorando os olhares das pessoas na miséria humana, descendentes de assassinos num vilarejo que cresceu com o passar dos tempos.


Entrou num elevador particular e pressionou a tecla numérica mais abaixo de todas, o número era treze.


***


O tempo passa estranhamente quando se está em solidão, quando não se tem comida exceto a que alimenta a criação de personalidades, teve tempo para criar ódio, alimentava-se dos morcegos que entravam na sua cela, usava-lhes o sangue para escrever a sua cónica nas paredes.


Morreu desidratado por inúmeras vezes, de fome outras incontáveis, para sempre renascer ali, prisioneiro num purgatório próprio onde o ódio cresceu.


Aprendeu a suportar a dor, a ver as auras dos seres que brilhavam, dos ratos e morcegos, desenvolveu a capacidade de criar fogo com os ossos dos animais, sempre observado atentamente pelos globos oculares de um crânio com o qual se deitava e falava.


— Como preciso de ti, amor.


Desta vez guardou por tempo infindável ossadas de roedores, morcegos e ratazanas, empilhou-os junto à porta, queria rever Diana, e o fogo trazia-a sempre.


No topo dos ossos colocou o seu colchão, não precisava dele, e incendiou o seu purgatório.

Ela surgiu do nada, a sua rosa escureceu e os olhos brilharam.


— Diana.


O fumo encheu a divisão e os pulmões de Felício, Diana dançava imaculadamente nas labaredas que lambiam a porta de metal, o mundo tremeu, um morcego que passou perto demais pegou fogo, levando com ele vestígios da sua amada.


Um novo tremor veio das profundezas infernais do planeta, o morcego incendiou outros que voaram em pânico, archotes na noite, estrelas em decadência, Diana estava por todo o lado.


A porta saltou das dobradiças enferrujadas pelo tempo, o colchão tombou para fora, no alto os demónios alados em bolas de labaredas fugiram por respiradores, um novo tremor…


Felício caminhou até à entrada da sua prisão, ao fundo, no corredor, um farol iluminava o mundo, o seu porto de abrigo chamava-o, caminhou para ela.


***


Saiu do elevador, e embrenhou-se por infinidade de corredores, onde o som era inexistente e as cores desbotadas.


A cidade é corruptível, podre desde as suas mais profundas fundações, e aqui, ao caminhar nos corredores, em silêncio, ele apercebe-se estar cada vez mais perdido nela, na sua decadência, como um rato num labirinto.




AUTOR

Carlos Palmito

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3 Comments


dittrich.eclair
dittrich.eclair
Jun 08, 2022

As vezes tenho a sensação de estar lendo "a vida imita a arte, ou seria a arte imitando a vida 🤔" enfim é sempre uma leitura cativante.... uma pena eu não ter afinidade com contos aterrorizantes, sinceramente chegam a dar-me náusea. Ainda bem que a escrita é primorosa e até um pouco fanfarrona 🤭. Sempre um prazer ler-te meu amigo Carlos.

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Carlos Palmito
Carlos Palmito
Jun 08, 2022
Replying to

fanfarrona? 😁 Obrigado Aya, espero que com os meus contos venhas a gostar de terror :)

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Carlos Palmito
Carlos Palmito
Jun 08, 2022

Vamos em 13, senhores e senhoras, 13 números, acreditem, quando comecei nem sabia se ia conseguir fazer tanto, criar tanto sem parecer repetitivo, acho que o estou a conseguir fazer, espero que sim.


Este número em especial é um pouco difícil de ler, tenho dois contos num, ambos sobre a mesma personagem, ambos com uma separação de algumas centenas de anos. Espero que gostem de ler com a mesma força que eu gostei de escrever.


É um orgulho escrever aqui, para e por vós, para e por mim. um abraço

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