Mais um conto de Carlos Palmito. Jéssica, a aprendiz de anjo saberá como agir no beco da aranha? O que o futuro lhe reserva? Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.
Leia, Reflita, Comente!
PARA PROTEGER E SERVIR
por Carlos Palmito
IG: @c.palmito
Parte 2 — No beco da aranha
Arco de luz, faúlhas incandescentes à distância; na colina, a antiga fábrica de papel arde, segundos antes desta libertação amotinada do fogo, existiu um estrondo que ecoou por toda a cidade.
Os demónios correm pela cidade, o espelho que nos separa da sua moradia estilhaçou-se, urra o vento, berram os morcegos, gritam as sirenes do carro-patrulha número cinco, seis, um.
Jéssica encolhe-se no banco de pendura, a olhar para o seu mestre, o tutor numa hierarquia gerida pelos anos de serviço, este guia a viatura num chiar de pneus, borracha, entra na avenida principal cortando caminho aqueles que precisam de ser protegidos, mesmo quando o não sabem.
— Samuel?
— Pega no intercomunicador, pergunta à central o que se passa — abrandou um pouco a velocidade para deixar um camião cisterna passar. — Parece a porra de um ataque nuclear.
A criatura de olhos negros demorou uns segundos até conseguir perceber o que era o intercomunicador, a adrenalina corria por todo o seu corpo, em conjunto com ansiedade, no ar, milhares de pirilampos dançavam, metade dos céus estava encoberto por nuvens de fumo denso.
— Central, daqui a Jéssica, o que aconteceu na fábrica de papel? — notava-se medo na voz, causado pela inexperiência, pelos anos de tranquilidade numa cidade de aparências.
— Daqui central, o incêndio na fábrica de papel causou um desmoronamento — entoação irritada, como uma professora que notou que o seu aluno esqueceu-se de algo. — Já chegaram ao beco indicado?
— Estamos perto — Jéssica não conseguia tirar os olhos das colunas de fumo alaranjado por biliões de pirilampos em forma de faúlhas, faunos negros que pretendem reduzir o universo a cinzas. — Não precisam de nós na fábrica?
A voz do lado de lá da comunicação móvel calou-se por segundos, ouvindo-se apenas uma inspiração prolongada.
— Sigam para o beco, carro cinco, seis, um — um clique, a comunicação morreu, como as estrelas no firmamento, sufocadas pela fumarada, as futuras cinzas de uma réstia de civilização.
Ela pousou o seu comunicador, aparelho estranho que nos permite falar com quem não está. (Será que se o sintonizarmos corretamente conseguiremos falar com quem já se foi?) Notou os olhos avelã do seu orientador colados em si.
— Diz?
Samuel sorriu para o anjo que lhe colocaram no carro, abriu pisca para a direita e parou o carro, desligou as sirenas e fixou as luzes no tejadilho.
— Jéssica, sempre que comunicares com a central, deves identificar o número do carro, e não o nome do agente que segue nele — interrompeu o discurso por um momento, passou com os dedos pelo seu bigode curto em reflexão. — Quanto muito, identificas o número do polícia, mas nunca o nome.
Tornou-se rubra a face da rapariga, pós-adolescente, novata saída da academia, tamanha a sua vergonha, quase tão grande quanto as nuvens de fuligem que a pouco e pouco começavam a esconder a lua, as estrelas, os elementos cósmicos, quiçá para lhes esconder a perdição.
— Desculpa.
— Não faz mal — do lado de fora ouvia-se vento, trazia-lhes odor de madeira e metais em ebulição, cheiros de uma cidade a arder. — Erros acontecem, eu fiz muitos.
Abriu a porta, Jéssica fez o mesmo, e saíram, a cabine telefónica encontrava-se perto, o fogo longe, os demónios no coração de cada habitante da decadência; Jéssica continuava abismada com os céus, hoje as estrelas eram outras, sentia a adrenalina a corroer o mais íntimo do seu ser.
Em passos rápidos chegaram à cabine, o auscultador estava tombado, quem a usou saiu a correr e esqueceu-se de o pousar, Samuel olhou em volta à procura de indícios do que houvera sucedido no local.
— Vamos, minha aprendiz de anjo — apontou para a entrada do beco. — Segundo a central algo aconteceu ali.
Ela seguiu-o, finalmente desviou a atenção dos céus, ambos perscrutaram o ambiente envolvente, sujidade, lama, dejetos humanos enfiados numa viela, dois contentores do lixo e ainda assim o beco estava atolado de imundície, desperdícios arremessados fora por seres cuja única função é consumir oxigénio, parasitas de Gaia.
A pouco e pouco aproximaram-se do primeiro contentor, nada lhes chamava a atenção naquela lixeira, qualquer vestígio existente estava camuflado pela espurcícia, mesmo na luz das suas lanternas.
A primeira coisa que captou o olhar castanho de Samuel foi uma poça escarlate, sangue abandonado, desprovido de corpo, a segunda foram uns vestígios de vidro.
— Realmente aconteceu aqui qualquer coisa.
Por seu lado, Jéssica apontou a lanterna para o contentor, seguia agora lentamente, com cuidado para não pisar possíveis provas do que quer que ali tivesse ocorrido, e com isso as contaminar, num telhado baixo, ali perto, um gato miou, da outra ponta ouviu-se o rosnar de um dragão.
Quando estava apenas a três passos de distância viu uma mão, uma coruja piou, a dois passos, viu o braço, alguns morcegos esvoaçaram perto, refugiados de um fogo em papel, um passo apenas e já via o corpo na perfeição.
Olhos vidrados no vazio, roupa ensanguentada, nas zonas baixas tinha um pedaço de vidro cravado, de onde o gargalo se destacava, como se o corpo fosse uma garrafa de vinho das mais azedas colheitas siderais.
Sentiu algo acre subir-lhe do estômago em direção à boca, escancarou os olhos em pânico, ao miar do gato juntou-se o uivar de um cão, na parede junto ao contentor estava uma aranha a tecer a sua teia de mentiras e deturpações.
— Jéssica! — era preocupação o sentimento embutido na voz.
Ela não respondeu, sentia ácido na garganta, correu para o canto oposto do contentor, caixão de um homem que em tempos idos tinha sido uma aranha, encostou-se à parede e vomitou, expeliu o cachorro-quente, sentiu o quente e ardente do gomitado.
— Jéssica? — a dona dos cabelos negros manteve-se em silêncio, excetuando o som do líquido a sair do seu interior.
Samuel dirigiu-se ao contentor de onde a sua aprendiz fugiu, lá dentro encontrou a razão da revolta estomacal dela, se o cadáver ali ficasse uns dias, certamente que as moscas se deleitariam com aquele pequeno aracnídeo.
— Central, daqui agente com número de identificação quatro, quatro, três, seis, cinco, escuto?
— Diga agente?
— Encontrei um cadáver escondido num contentor de lixo no beco das almas perdidas — esperou por resposta do lado de lá, na ausência continuou. — Aguardo instruções.
— Certo, isole o local e aguarde a chegada da equipa técnica.
— Tenho autorização para procurar indícios nas imediações?
Existiu um breve silêncio, o suficiente para se ouvir o vento em corrida na viela, trazendo com ele odores de jardins ausentes.
— Tem — ouviu-se primeiro estática, depois o clique do desligar da chamada.
— Jéssica, estás bem? — gostava da aprendiz, a parceria ainda era curta, mas sentia empatia para com ela, a neta que nunca teve.
Ela ergueu a cabeça a custo, amargava-lhe a boca, sentia a face enrubescer e um arrepio na derme.
— Sim — recuperou fôlego, sentindo nesse respirar o nauseabundo odor da bílis. — Nunca tinha visto um morto, desculpa.
Samuel riu perante o embaraço da sua pupila, no beco uma sombra felina saltou de um telhado para o outro, no outro lado da realidade existiam convites em primeira fila para contemplarem a atuação dos anjos de azul.
— Duvido que algum dia vás esquecer a tua primeira vez.
Ela gargalhou, o velho policia era astuto, sabia como aliviar as situações, que palavras colocar e quando as usar.
— Fica aqui, Jéssica, isola o perímetro — apontou para o fundo do beco. — Vou ver se existe algo por aqui que possa ajudar a investigação.
— Mas…
— Não tenhas medo, o morto não morde — uma gargalhada descomunal, enquanto se afastava com a lanterna a vasculhar todos os recantos do beco.
Jéssica correu até ao carro, o quepe voou-lhe da cabeça e os seus longos cabelos esvoaçaram na cidade, sobre a cidade.
Sob a mesma metrópole caminhava um bombeiro em direção a um vulto com uma rosa-branca.
Retirou a fita para isolar o local e voltou para junto do caixão de lixo humano, apanhando o chapéu no caminho.
Na outra ponta, Samuel incidia a sua luz sobre um desenho na parede ainda a escorrer tinta, por sua vez, Jéssica olhava para o rosto do corpo, franziu o sobrolho, conhecia as feições.
— Samuel — gritou, esquecendo-se de ser noite, olvidando-se do fato de ser uma polícia, e não uma adolescente vinda de um qualquer bar em companhia dos seus alcoolizados amigos.
Ele mirava o desenho, hipnotizado, um ser draconiano em azul numa parede moribunda.
Jéssica terminou de isolar o local e começou a calcorrear caminho em passo rápido na direção do seu mentor, o céu continuava laranja, os pirilampos esvoaçavam, o dragão observava o policia de lado de trás da sua realidade alternativa, os gigantescos olhos de uma criança fitavam a cidade.
— Samuel, sei quem é o morto — ele estava a guardar uma lata de spray no casaco, ela extasiada. — Não sei se é boa ou má notícia, mas tenho quase a certeza.
Os olhos avelã do velho polícia em quase reforma miraram-na em curiosidade.
— Lembras da tentativa de violação no jardim?
Levantou-se, ocultando o vulto no seu casaco.
— Sim.
— É ele! O gajo que está ali esquartejado é ele.
— Ele? — No fundo, sabia que ela o tinha visto guardar a lata.
— Sim, o tipo é igualzinho ao retrato robot, o violador.
— Tens a certeza?
— Pela alma do meu tio!
Voltaram para junto do contentor, ele sentia o olhar curioso dela espetado no seu casaco.
Na entrada do beco começaram a surgir os elementos da polícia técnica, um deles apressou-se para o dueto de mestre e aprendiz.
— Onde está o cadáver?
Samuel não respondeu, indicou o contentor que estava ladeado de fita amarela.
— Encontraram alguma coisa mais?
Jéssica, a aprendiz de anjo olhou para o seu instrutor, no céu o fumo começava a desaparecer, as estrelas a nascerem, pontos cintilantes no aveludado edredom de um Deus.
— Não — respondeu ela, na falta de palavras do seu tutor.
— Certo. Penso que já não sejam mais necessários aqui, agora eu e eles tomamos conta da ocorrência.
Ambos os patrulhas concordaram, começaram a caminhar em direção à sua carruagem para proteger e servir.
— Esperem! — estacaram, tornaram-se estátuas. — Aquela poça de vomitado ali?
Jéssica esboçou um sorriso tímido.
— Fui eu. Nunca tinha visto um cadáver tão perto.
O senhor policia técnica soltou uma gargalhada por detrás dos seus dentes amarelados.
— Podem ir então.
Entraram no carro, e iniciaram a marcha na avenida, em andamento lento.
— Diz, Jéssica — aguardou um segundo pela voz que não surgiu. — Sem medos, pergunta o que quiseres, vi o teu olhar atento de raposa.
— Porque ocultaste a lata?
Ele mirou-a com um observar desinibido, os faróis da viatura cinco, seis, um embateram num dragão que rosnava aos deuses notívagos.
— Sabes, pequena, existem segredos nesta metrópole longe do sol e do trópico pelos quais vale a pena arriscar a pele.
AUTOR
Carlos Palmito
Bravo! Aguardando a parte 3.
Esse conto ficou muito legal. Recomendo o Podcast que ficou melhor ainda.
Cá estamos nós na noite, no dia, na imaginação, cujos únicos limites são impostos apenas por nós, sem barreiras nem fronteiras.
A todos, o meu mais sincero obrigado.
Lindo escrito, aguçando nossas imaginações.
Anjos vestidos de azul, esquartejamento... todo muito macabro e inteligentemente escrito! 🎭