A saga continua...
Nas suas costas ficou a porta fechada, uma loba a uivar ao luar escarlate, um luar exigindo por sangue, como que adivinhando o que está por vir, enquanto o detentor do olhar cinza se viu forçado a descer os patamares em direção ao Inferno.
Que punições enfrentará, que demências existirão na eternidade do tempo, quando o próprio tempo se extingue a cada ribombar do coração?
Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.
AUTOR CARLOS PALMITO
Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt
A DESCIDA
Alvenaria constituída por rochas, negras, brancas, fortes, indomáveis; paredes intocáveis de um edifício que nasceu antes do próprio planeta, que germinou no espaço sideral, sendo posteriormente rodeado por terra, florestas, rios, animais e rosas. No final da criação surgiu uma cidade, onde nunca ninguém entra ou sai, o deus esqueceu-se apenas do sol, talvez por lho terem roubado algures na sua curta vida.
Esta era a estrutura interna da masmorra infernal, casa de monstros, assim eram as suas paredes e corredores, as escadas até ao centro da terra… Alvenaria, rochas ligadas entre si por argamassa.
Mateus olhava para a porta, aquela que fechou momentos antes, deixando Elsa no pátio central, aquilo a que chamavam o piso zero do castelo de um monarca tombado nas suas alucinações, rei dos prescritos, senhor das meretrizes, o bruxo dos tempos esquecidos.
— Elsa? — o grito veio da sua alma, não das cordas vocais.
— Vai embora caralho. Tens a Mariana para salvar — respondeu-lhe a memória.
Virou costas, sabia que nada poderia fazer ali, no fundo, ela tinha razão. E se existia alguém com capacidade para sobreviver na batalha sob uma lua escarlate, era a senhora dos lobos, descalça, a uivar, rosnar e estraçalhar.
No final do corredor iluminado por archotes; era estranho, ele via as lâmpadas, os fios que conduzem eletricidade entre neurónios, contudo, estavam desligadas; a alumiação provinha somente daquelas labaredas a dançarem e lamberem as paredes de pedra, criando fantasmas com as suas sombras, encontrou o primeiro lance de escadas.
Ele desceu cautelosamente, atento aos ruídos, ciente da situação. Em algum lugar da memória, ouvia o som das asas de borboletas negras. Jamais se sentira tão sozinho.
— Mateus — a voz era anciã, mais velha que a masmorra; vinda do outro lado do espelho, de uma das inúmeras realidades onde as almas são enclausuradas.
— Diz — respondeu para a escuridão, os seus pés tocavam nesse instante o chão do primeiro andar inferior, o próximo lance de escadas estava na ponta oposta da sala em que se encontrava.
— Corre — existia desespero na voz que emitia um odor de bolachas caseiras e chá de ervas desconhecidas. — Ele está a ficar cada vez mais fraco, corre, sê o vento.
Todo e qualquer almanaque sobre invasões refere que, estando em terreno desconhecido e desvantagem numérica, temos que ser cautelosos, contudo, ali estava a velha do tabuleiro de xadrez, a tentar mover peões a uma velocidade estonteante. Quem é ele? Quem está a ficar fraco?
— A Mariana precisa de ti, mas mais que ela, o universo demanda que sejas rápido — insistia a idosa, sentada na sua cozinha.
O homem do cabelo alvo disparou na casa de Sodoma, o apelido que foi dado à sala na sua frente, qual projétil de uma espingarda, qual flecha ardente em direção ao coração do deus de olhos azuis.
— Vou a caminho, Mariana.
Saltou sobre cadeiras, mesas, tombou garrafas de vinho e cálices de sangue, evitou poças liquidas com coloração tinta. Nas mãos trazia a sua cantora de hinos sobre morte e desespero, em segundos encontrava-se no outro extremo da divisão, com sorte, os soldados do rei louco estavam todos no pátio… a receberem a extrema unção de Elsa.
As escadarias seguintes transportaram-no até Gomorra, o ar estava empestado com um fedor a enxofre, uma cidade destruída por deuses na sua ira contra os pecadores, os archotes encontravam-se derrubados, alguns cortinados incendiados, esculturas partidas, e homens violentados com lanças medievais.
— Que aconteceu aqui?
— Não pares, Mateus, continua — a velha ordenava a sua marcha. — O mundo está a colapsar, não pares por nada. Já mal vejo o caminho, eu própria perco capacidades, falo contigo através de um espelho baço.
E não parou, continuava a correr que nem um atleta na perpetuação de um pesadelo, no seu purgatório privado, as escadas seguintes levariam até às planícies da luxúria, enclausuradas nos pisos descentes das masmorras da perdição.
Evitou corpos, chamas, com um único objetivo na mente, a filha de Gaia.
A sete metros das escadas, ouviu um gemido como se uma beringela tivesse sido cortada ao meio, travou abruptamente, e, nesse preciso instante, um machado de guerra rasgou o ar onde o seu corpo estaria a passar, caso não tivesse escutado o lamento de um cadáver.
De trás de umas cortinas em labaredas surgiu uma besta, ensanguentada, a seus pés jazia um homem estripado, ainda vivo e em agonia.
Mateus deu dois passos atrás, com os seus olhos cinza, lembrando tempestades, fitos na abominação que se encontrava na sua frente.
— Quem és? — indagou, enquanto virava a lâmina do seu punhal para baixo, com o gume voltado na direção do monstro, a preparação do palco para a sua cantora lírica.
— Eu? — questionou o gladiador de machado em punho. — Sou a punição — libertou uma gargalhada maquiavélica, que ribombou por toda a Gomorra, sendo que no mesmo momento chutou a cabeça do estripado a seus pés, arrancando-lhe o lamurio final.
— Punição? — retesou todos os músculos do seu corpo, fletiu os joelhos, colocando-se em posição de combate.
— Sim, se um deus pode punir os seus seguidores por falharem os ensinamentos, se uns pais podem espancar a criança que chora no berço com fome, eu… posso punir quem quiser — rodopiou o gigântico machado, avivando nesse ato as chamas que incendiavam a divisão, carregando o ar com o pútrido aroma a enxofre.
Mateus não esperou, saltou para cima do seu oponente, como um felino, como Ódin, lembrando a tempestade num oceano intemporal.
— Pune isto — no seu salto girou o braço direito, a sua cantora entoou uma ode à deusa da lua que se extinguia a cada segundo do início do eclipsar da civilização, o gume tocou levemente as costelas da besta, que riu estridentemente, qual corvo num deserto cósmico.
— Só isso? — troçava a criatura, no seu torso surgiu um risco rubro, enquanto levantava o machado para desferir um golpe capaz de destruir planetas.
O homem dos olhos cinza esquivou-se da lâmina, com um passo de dança para a esquerda, enquanto no mesmo instante mudou a posição da faca nas suas mãos, ponta para cima. Na divisão eclodiu o som do estrondear do aço contra o chão, o gladiador falhou o alvo, e os cortinados incendiados rugiram em fúria.
A avó observava através dos olhos do protetor da filha de Gaia, quase sem respirar, não previra a interferência da punição, mas, dado o estado critico do deus alimentado por máquinas, fazia sentido.
Num hospital, algures numa outra realidade, os ‘bips’ cardíacos aumentavam a cadência, a velocidade, quase como numa arritmia.
O gladiador berrou em raiva, nada lhe poderia escapar daquele ataque, mas de alguma forma, o velho conseguira evitá-lo. Virou os olhos azuis a chisparem icebergs na direção do seu oponente, enquanto começou a levantar o machado, uma vez mais.
Mateus sorriu, fletiu os joelhos e galgou, nesse instante sentia-se como colesterol prestes a provocar um AVC na sua vítima; o aço damasco na sua mão sibilou na capital do pecado, antes de penetrar fundo no queixo do gladiador, perfurando-lhe o crânio até a ponta surgir no alto do cocuruto, coberta de algo viscoso que um dia poderia ter sido massa encefálica.
— És um idiota — berrou o homem de cabelos brancos para a punição. — Estás habituado a estripar meias vidas, eu… sou filho de Gaia, esposo da natureza, protetor da sua filha, eu sou a casa dos deuses.
— Mateus — a velha expirou, tentou desembaciar o espelho das realidades transitórias, contudo, estava impossibilitada de tal ato, o deus de olhos azuis estava imóvel na cama da lamentação, preso a ventiladores. Por detrás das pálpebras, os seus globos oculares percorriam universos. — Por tudo o que é sagrado, apressa-te!
O velho de olhos cinza removeu a faca do crânio de alguém que se apelidou de punição, limpou-a nas roupas do cadáver e continuou a sua demanda, Mariana era o objetivo, quanta pureza poderá existir num jardim? Neste jardim alimentado a degradação, espurcícia e ratazanas assassinas?
Desceu as escadas quase sem tocar os degraus. Próximo nível, a luxúria.
Entrou na sala, a iluminação desta provinha de candelabros presos ao teto com velas a lembrarem constelações disformes, e de touros de ferro com labaredas no seu interior e um objeto fálico no dorso, a montaria das virgens que habitavam nestas planícies.
Olhou em volta, nem sangue, e muito menos mortos, parece que a punição seria só para Gomorra, o deus é seletivo.
Avançou em direção aos próximos degraus, como sempre, no extremo oposto. Aquele que pretende descer até ao inferno, tem eternamente que percorrer todos os escalões de deterioração da alma, só assim se consegue atingir a pureza avernal.
Estas escadarias foram percorridas em segundos, no final faziam uma curva, virou nela, de encontro a um bastão que o atingiu em cheio na cabeça, a sua companheira de aço damasco voou-lhe das mãos, assemelhando-se a um pássaro que foge da sua gaiola.
Essa ação provocou uma rachadela nos vidros da perceção, no espelho entre realidades e universos em colisão, que se consomem num ato de auto canibalização.
— Mateus! — gritou a velha, avó de todos, senhora dos pântanos.
Na sua jaula, Mariana sentiu uma pontada no coração, enquanto o sem-abrigo vislumbrou o universo ser engolido pela eternidade da escuridão.
Na sala de vigia, Felício contemplava tudo, e sorria, levantou-se da sua poltrona real, dando um último mirar para o monitor central, onde uma sombra suprimia nesse instante mais de metade da lua vermelha.
— A tua prenda, Dino! — pressionou um botão que desligou todos os ecrãs, e dirigiu-se para o seu elevador privado. — Espero que te divirtas com ela.
No hospital central da cidade, Yulyia sentiu a primeira contração, forte que nem a investida de um rinoceronte, Cândida estava a caminho, sabia-o.
Mais um capítulo na história que vou ter pena quando chegar ao fim, e sentir saudade quando tudo sobre a cidade da noite eterna for dito.
Um abraço