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Foto do escritorLuiz Primati

CRIATURAS NOTÍVAGA(S) Nº 30 — 25/01/2023

A saga continua...


O caos se instala na ponte. Tiros são disparados para todos os lados. Alguns são atingidos pelos projéteis que penetram rapidamente a derme, rasgando ossos, ferindo vidas. Borboletas negras rasgam o ar como morcegos famintos.


A velha ainda comanda os seus paladinos, mesmo que a visão falhe por vezes. Jéssica, Marcos, Luisa, Samuel: quem sobreviverá e quem se tornará uma lembrança no passado? Só os deuses sabem, os outros especulam...


Leiam e comentem. Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.

Esta imagem é um fragmento de: https://www.wallpaperflare.com/smoke-darkness-gun-bullet-photography-magnum-gunshot-wallpaper-mxawj
 

AUTOR CARLOS PALMITO


Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt

 

ILUSÕES OU REALIDADES


Cigarros amassados num cinzeiro cósmico com o fumo a rodopiar no infinito e dissipar-se no nada, era assim que se sentiam, Samuel havia tombado na eternidade do abismo, arrastado por uma enxurrada de borboletas desprovidas de pigmentações e brilhos. No seu caminho em direção aos Deuses de outrora ainda disparara a arma, matando o último dos soldados do pó.


— Temos que nos apressar — insistia Rafael, na mente ainda via a cólera em espiral das borboletas negras.


— Não! — Jéssica berrava, para além da dor e dos morcegos, para lá da perceção e do punho a esmagar o peito de uma criança. — Samuel.


No tabuleiro de xadrez, no outro lado dos espelhos fronteiriços entre realidades, a avó tombou um cavalo, no exterior os trovões entoavam cânticos de fúria e lamentação em honra ao Paladino que jamais veria a luz do dia. Uma lágrima brotou-lhe dos olhos ladeados de rugas temporais.


— Vamos Jéssica — a raposa falava, na voz que sempre fora sua, a criança amante de estrelas e deuses por nascer. — Mais homens virão, temos que sair da ponte o quanto antes.

A polícia de cabelos negros ergueu-se, olhou para a profundidade da perdição que lhe levara o seu mestre, em tristeza e agonia.


— Vamos — a voz falhava-lhe, era acompanhada por perda e espinhos a cravarem-se-lhe no coração.


Reiniciaram a marcha em corrida, não existia tempo para funerais e despedidas, nem barcas no rio em chamas colossais, ou piras a elevarem labaredas aos céus, ali subsistia o vazio ácido e corrosivo.


No outro lado do plano existencial a velha lamentava, a visão era turva, as cores o cinza e o negro, num espelho embaciado pela condensação das lágrimas ferventes. A sua chaleira apitava em sintonia com as máquinas do hospital que se esforçavam para manter vida no habitáculo corpóreo da criança.


Tolos são os que deixaram de acreditar em milagres, os corcundas podem recuperar, os cegos ver, o dia nascer, e a lua, essa estará eternamente lá, com uma deusa e um coelho.


André deixou-se ficar para trás, perto da aprendiz, queria ter a certeza que ela estava bem, que aguentava a perda, examinava-a atentamente enquanto corria a seu lado, via-lhe dor e pétalas vermelhas, mas, acima de tudo, determinação, acompanhada de um ódio pulsante.

Pobre da criatura que lhe surgisse na frente nesse momento.


Rui, por seu lado, ficou junto da raposa, ouvira-lhe a voz, todos ouviram, mas a ele tocou-lhe a alma, a sua rosa, o seu dragão verde, conseguiu ver a menina rebelde aprisionada nas tonalidades do fogo eterno.


— Como sobreviveste estes anos todos, Luísa? — indagou.


Percecionou-lhe o esgar de um sorriso nas feições, por detrás do pelo, no brilho esmeralda dos olhos e no ondular das orelhas.


— Cantei à lua, comi o que existia, dormi numa cabana abandonada onde cheirava sempre a bolachas e chá — respondeu ela. — Esperei, sabia que um dia todos estariam juntos, não sabia quem eram o todos, mas a avó dizia-me que esse dia aconteceria.


Rafael acompanhava a conversa do seu amigo, irmão de ventres desconhecidos, filhos da cidade que não tem dia, domadores de dragões na decadência de um mundo criado na dor.

— Não sejas abelhudo, Rafa — era Ricardo, que acompanhava a conversa com a mesma curiosidade que o seu mano draconiano. — Eles estão a matar saudades.


— Achas que poderá surgir dali um romance? — brincou o rapaz do dragão azul.


Um guincho estridente de terror e agonia estrondeou do alto, como que em resposta à pergunta. Milhares de gargantas simultaneamente, num uníssimo coro gutural, o pelotão de sete estancou de imediato, estavam a parcos metros da saída da ponte. Nunca ninguém olha para cima.


Do alto despencou sangue e asas, cabeças aladas de morcegos que ousaram ser borboletas nas suas mais fantasmagóricas deturpações.


— Porra, corram, saiam da ponte — ordenou Marcos, elevando os seus olhos para o teto do mundo abaixo da urbe, lá residia uma batalha entre roseirais infindos e os habitantes voadores da escuridão eterna. — Que merda é esta?


A velha recuperou a visão momentaneamente, e nela viu Caos, o deus primordial a rir desalmadamente. Serão acaso os deuses detentores de almas? Dizem que a morte exige a nossa no derradeiro suspiro, será essa a que está a clamar pelo menino de olhos azuis?


— Fujam — gritou.


A acompanhar o pavor desmedido guinchado por porcos alados, ou morcegos, ou borboletas, ou o que quer que fossem eles naquela realidade ilusória, surgiu um estrondo, um mastigar de rochas, um rasgar dos véus das ninfas junto às águas por Pã, sedento por carne.

— Merda, saiam da ponte — Era André, que percebeu quem triturava os rochedos, agarrou Jéssica pela cintura, colocou-a aos ombros e correu os metros que faltavam, como um atleta olímpico em honra a um deus que jaz nos confins da memória.


Os roseirais estavam a desfazer a ponte, em conjunto com as criaturas notívagas, pedras voavam, acompanhadas de asas, sangue e pétalas. As paredes laterais e o teto desabavam, lembrando o vento de leste a atirar cartas no infinito.


No exato segundo em que Marcos, que ficou para último, o capitão afunda sempre com o navio, colocou os pés fora da ponte, esta derruiu no abismo, quem sabe, para providenciar passadiços para o nobre paladino que nesse mesmo vazio se perdeu.


Longa vida aos criadores de anjos e ao Deus de olhos azuis preso a máquinas que tentam fornecer milagres num universo que deixou de acreditar.


— Que raios aconteceu aqui? — questionou Rui, quase sem fôlego, que correra com Luísa ao colo.


Os caules das rosas, artérias no corpo de um menino, baloiçavam ao sabor de uma brisa inexistente, junto à beirada de onde os paladinos se encontravam, perplexos perante o derruir do plano existencial em que se encontravam.


— Ele teve uma convulsão — a avó, senhora dos tempos, que vira Caos, e antes do Caos era o nada, ela conseguiu vislumbrar, mas estava cega de novo, o espelho embaciou e a chaleira não se calava, apesar de já não estar ao lume, apesar de nem existir.


Marcos fitava o roseiral que bamboleava, parecendo serpentes na nuca da Medusa, abanou a cabeça, estava habituado à loucura e confusão mental, já vira tudo, mas ali, todo o conhecimento que detinha era inútil, nem sequer auras conseguia percecionar.


— Quem teve uma convulsão? — indagou.


— O nosso criador — enigmas, sempre incógnitas nas frases da avó, Deus fala direito por linhas tortas. — Vão, não consigo ver mais, agora vejo apenas pelos vossos olhos, não pelos meus, vão.


Analisaram qual o melhor caminho, as roseiras estavam paradas atrás, uma parede de espinhos inexcedível, Ódin escolheu por eles, teriam que confiar no branco sujo, afinal, ele sempre soubera ir ter com Mariana.


— Por aqui, vamos — Marcos, o capitão de um navio a afundar no temporal da inevitabilidade.


O felino saltou sobre algumas rochas e ficou a anatomizar o horizonte ao fundo existiam os túneis, a atmosfera estava empestada com os aromas de cânticos formados no caminho dos pecadores, “ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte…”


Marcos aproximou-se do gato, baixou-se, colocou-lhe uma mão no dorso, sentindo um rosnar inaudível oriundo dos seus temores e vigores.


— Que se passa?


O felídeo miou, tentava abarcar todos os túneis com a sua visão, sabia por qual deveria ir em direção à filha de Gaia, mas, no ar, existia um paladar cítreo de morte.


Rui estava ainda com Luísa, Jéssica isolara-se, soturna, acompanhada pelo observar atento de André.


— E caçavas? — indagava o rapaz de cabelo negro.


— Claro, tinha que comer — respondeu a raposa.


Rafael permanecia junto ao roseiral, sentia vontade de tocar-lhe, de o sentir, ver se era real ou ilusório, como tudo naquela realidade, deturpações, ilusões e criações.


— Porque estamos parados? — gritou para Marcos.


— A analisar apenas — respondeu o imortal.


— Não te metia nojo? Carne crua? — continuava Rui, apercebendo-se de um cintilar escondido nas sombras do túnel. Ilusões?


— Nenhum, é estranho, mas até gostava — um leve estalido elevou-se sobre o esgravatar ininterrupto das rosas.


— Alguma coisa estranha na minha cara, André? — questionou Jéssica. O brilho voltou a ser visto pelos olhos negros de Rui, uma espécie de pirilampo mortífero.


— Desculpa — voltou o bombeiro. — Como estás? — o som de pedras a serem movidas atravessou os corredores até aos ouvidos do adolescente do dragão verde, Rafael acariciou um dos caules dos roseirais, que lhe mordeu a derme.


— Com raiva — balbuciou a rapariga da pétala vermelha. Um estalo mais alto ecoou, lembrando a bala de uma espingarda de alta precisão a ser colocada na câmara.


— Fodasse — Rui pegou em Luísa ao colo e virou as costas para o túnel do brilho.


Um estrondo retumbou nos corredores, um clarão iluminou a face do general do exército chacinado, escondido atrás de umas rochas, uma bala foi propulsionada do cano e atravessou todo o espaço existencial até às omoplatas do detentor do dragão verde, abrindo-lhe um buraco nesse mesmo local.


Um novo engatilhar, momentos de inação entre os Paladinos, e novamente um tiro, este segundo projétil raspou a face do imortal, indo-se cravar na nuca de Rui, uma pancadinha traseira impulsionou-o para a frente, onde surgiu um orifício capaz de engolir gigantes.


— Rui? — Rafael tentou correr para ele, contudo a roseira que ele acariciara prendeu-se ao braço, sentia-se uma minhoca na ponta de um anzol.


Mais uma bala colocada na arma, André escancarou os olhos, Ricardo correu para Rui, Rafael agarrou a roseira pelos espinhos, e arrancou aquele caule de massa composta de que era parte, sentiu a carne ser dilacerada.


— Rui?


Ressoou o tiro, mais uma bala perdida a encontrar carne, agora as costas de Ricardo, dois dragões de uma só vez. Abatidos vilmente por trás.


— Ricardo? — gritou Rafael. — Rui? — O sangue do draconiano verde tingia o pelo de Luísa, jamais seriam amantes, o Deus não permitiu, e o destino opôs-se veemente.


— Protejam-se — gritou André, colocando o seu corpo em frente a Jéssica, transmutando-se de Paladino de um Deus moribundo a Cavaleiro de uma criatura treinada para ser anjo.


— Quem caralho? — berrou Rafael em fúria, enrolando o caule da roseira nas suas mãos, sentindo todos os espinhos a cravarem-se nelas, sem dor alguma.


O ferrolho da arma ouviu-se de novo, Rafael viu-o, ao longe, começou a correr na sua direção, a fúria cria heróis, tolos os que deixaram de acreditar em milagres.


Marcos apercebeu-se da intenção do rapaz das ruas, morador de um autocarro com vitrais de universos em colisão, e correu a seu lado; ribombou um trovão libertando um aroma a enxofre e um relâmpago alaranjado que pintou o rosto do general do saco, nele existia medo, sabia o que lá vinha.


O fantasma colocou-se na frente desta bala, que lhe rebentou o peito, Rafael pulou por cima dele, aproveitando o impulso para cair em sobre o general.


— Filho da puta — berrou, enquanto lhe esmurrava a cara com a sua mão envolta no caule espinhoso das artérias de um deus cujo sopro se extingue a uma velocidade claustrofóbica. — Mataste-os! — O rosto do general transformava-se em polpa a cada murro que recebia, sentia os espinhos dilacerarem-lhe a pele, ao menos matou dois.


O fantasma ergueu-se, a cavidade proveniente da colisão com a bala principiou a sua miraculosa regeneração.


Luísa sentiu calor em todos os locais manchados pelo sangue do seu amigo, um ardor que jamais havia sentido. Ao seu nariz chegavam odores de flores chacinadas e pássaros a voarem, sentia aromas de terras queimadas pelo sol.


Rafael desenrolou o caule das mãos e colocou-o em volta do pescoço da massa disforme que tinha na sua frente.


— Ah, meu, nem sabes na merda que te meteste — começou a apertar, sentiu os músculos retesarem, a resistência da garganta do general que morreu no instante que premiu o gatilho, apesar de nessa altura nem o saber.


André viu o rapaz dos cabelos loiros transformar-se em dragão, azul, verde e vermelho, a abocanhar a cabeça de um verme que ousou caçar seres draconianos, viu-o a esmigalhar aquele pequeno recetáculo de massa viscosa, e engoli-la.


Marcos percebeu o que acontecera, para além das ilusões criadas nos labirintos neuronais de deuses a definhar, viu o caule da roseira decapitar o homem do saco, qual cólera e ira incontrolável.


Ódin apercebeu-se de outra coisa, Luísa, a transformar-se em rapariga, e de rapariga em fogo, alimentado pelo sangue de Rui, não lhe sentiu maldade, contudo, vislumbrou-lhe um poder supremo, que ultrapassava o de qualquer criatura que já conhecera.


Quão fino é o véu entre a realidade e a construção poética na criação de heróis e paladinos? Quantos fatos cabem no mesmo cabide universal?


Quantos bebés são necessários sacrificar em honra a virgens de bordéis?


O que podem os guerreiros santos fazer, quando no caminho da redenção, apenas encontram morangos apodrecidos e cadáveres a descansarem na sombra?


 

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1 comentário


Carlos Palmito
Carlos Palmito
25 de jan. de 2023

Quarta-Feira gelada em Portugal. Gelada só gosto da cerveja e do vinho verde. Espero que gostem da partilha.

A todos, meus sinceros abraços

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