A saga continua...
A narrativa de hoje, devo dizer que é, no mínimo: fantástica e caótica! A batalha entre forças opostas num cenário surreal é o cerne do conto. A história envolve um médico exausto, um gato falante, uma bruxa das labaredas e um Deus de olhos azuis. Todos lutam por suas vidas em meio a chamas, trovões e explosões, enquanto anjos e fantasmas assistem à cena.
Um texto complexo para os que não estão acostumados com Carlos. A tensão crescente e uma expectativa de que algo importante está em jogo e será decidido no desfecho da batalha. Será?
O bem e o mal, a vida e a morte. O conto desafia a lógica e a razão, convidando o leitor a imergir num mundo de fantasia e imaginação.
E você? Vai ficar a olhar ou quer saber mais?
Se não tiver tempo de ler, escute no Spotify.
AUTOR CARLOS PALMITO
Nasceu na cidade de Évora, Portugal. Aprendeu a ler e escrever antes de iniciar a escola, por força e dedicação da sua mãe. Trabalha na área de TI, apesar da sua verdadeira paixão se encontrar na escrita, sendo nela que despende grande parte da sua energia. O primeiro livro que leu, e um dos que mais o marcou foi “O Conde de Monte Cristo”, teria sete a oito anos na altura, mas desenganem-se se pensam que ele se fixou só por romances, pois ele lia de tudo, desde banda desenhada a livros de geografia. Durante o seu percurso na escola, foi convidado a ingressar no jornal escolar, odiou esta parte, aqui descobriu que adora escrever ficção, mas odeia escrever sobre realidades. Tem como autores favoritos Alexandre Dumas, Júlio Verne, e o que considera seu ídolo e inspiração, Stephen King. Considera-se um apaixonado por letras, filosofia, psicologia e arte em geral, este autor desde cedo que começou a rabiscar contos e poesia. A sua criação hoje em dia rasa a loucura e a lucidez, a harmonia e o caos. Autor no blog https://allinone.blogs.sapo.pt
INTEMPÉRIE FLAMEJANTE
Crime, tudo começou num, e terminará num, as ondulações das marés siderais agitam-se na nevasca do infinito.
— A recarregar as pás, afastem-se! — a ordem veio do médico, estava extenuado, a última semana fora dura, cruel.
— Ódin? — foi um coro que entoou o nome do Deus felídeo, desde quando falam os gatos?
— Esta é a batalha que tudo decidirá, e aquele ali, é a morte! — insistiu o branco sujo. Se as raposas falam, se o fogo fala, por que não os gatos?
— Tu falas? — balbuciou Rafael. Luísa estava hipnotizada pelas labaredas que dançavam em frente a Felício, altivas, poéticas, numa maresia de sedução que não se apagava na chuva.
— Sempre falei, vocês é que não escutavam — retorquiu o gato, enquanto pulava para o lodaçal dos tempos que colidiam e se estraçalhavam.
— A aplicar choque — as pás tocaram o peito do Deus de olhos azuis, o seu corpo retorceu-se na eletricidade, o coração manteve-se calado.
Um trovão mais alto que todos os outros, estrondeou no bosque, por um segundo a noite tornou-se branca, lembrando leite, cegando, sufocando todos os seres presentes na clareira.
— Esta noite vai ser memorável, meu amor — lambia a voz de Diana no silêncio da escuridão. — Irá ser transcrita por escribas, relatada por trovadores, até ao dia que o planeta parar de girar.
Ódin baixou-se, na lama, o pelo eriçado, os relâmpagos iluminaram os céus, refletindo na chuva que lembrava diamantes.
— Puxa-lhe fogo — ordenava a mulher das labaredas.
O homem da rosa-negra aproximou-se da lenha na base da cruz, baixou-se delicadamente, lembrando uma vénia de um cavalheiro que acabara de convidar a sua donzela para uma dança nos salões da corte real.
— Não! — rosnou Ódin, saltando no grito em direção à morte, ao homem morte, ao senhor da rosa-negra.
— Aumentem a potência do desfibrilador.
— Mas doutor — protestou a enfermeira.
— Nada de mas. Aumentem.
— Quem ousa nos interromper? — silvou Diana, as profecias não falavam de gatos.
— Nós — trovejou Luísa nas suas chamas, flutuando acima do pantanal, em direção à sua alma de espelho. Para todo um negro, existe um branco, para todas as Dianas existe uma Luísa, para todo o fotografar existe um relâmpago.
Os outros seguiram-na, os Paladinos da velha que fora engolida por um pântano, retornando dessa forma a Gaia.
Felício estava boquiaberto, pensara que os seus guerreiros haveram conseguido derrotar os peões da velha.
— A aplicar choque. Afastem-se — o corpo do Deus pulou na cama, o monitor do seu coração continuava numa linha reta.
O gato foi o primeiro a chegar, agachou-se, vergando os músculos das patas traseiras e saltou sobre a face do detentor do archote. As garras da pata frontal esquerda rasgaram-lhe a cara, a traseira atingiu-o no olho, que desenraizou do rosto da morte, aproveitou o impulso para acertar na escadaria e continuar em direção à cruz.
Felício sentiu dor como jamais tivera sentido, sentiu o gume de Tirfing, e o sangue viscoso escorrer em direção ao vazio, sentiu Bóreas entrar-lhe no globo ocular desabitado, e, estranhamente, medo. O inesperado provoca sempre pânico.
— Era suposto estarem mortos — berrou no epicentro da tormenta. As escoriações causadas pelo Deus morto não iniciaram o processo de regeneração.
— Mas não estamos — Marcos vinha do ar, como chuva, lembrando vento, o punho embateu no nariz do homem da rosa-negra com toda a robustez que um fantasma consiga ter. Ouviu-se um estalo, um quebrar nos rasgos da realidade.
— Parem — explodiu Diana, qual Quimera enfurecida. — Não têm o direito — do seu corpo incandescente voaram tições atingindo o púlpito, os agressores, a floresta afogada em mijo de anjos.
Nesse instante Rafael avançou para Felício, de cabeça baixa, em direção ao abdómen, a fúria dos dragões contida numa criatura notívaga. O rei louco do submundo previu o ataque, esquivou-se para a esquerda, rodou o corpo e arraiou o punho direito, que ainda envergava o archote pujantemente sobre a coluna do ser draconiano. Rafael gritou em agonia.
— Cão! — era André, em corrida, saltou com o joelho direito para a frente, por cima do corpo do rapaz de rua, Felício era ágil, lembrando uma pantera, escorregadio que nem uma frase sem pontuação. Antecipou e escapou-se, deixando o bombeiro estatelar-se na lenha que começava a arder após a explosão da bruxa das labaredas.
— Ódin! — Mariana sabia que regressaria, ele sempre soube como a encontrar, como a amar, como a proteger. — Sabia que virias.
O gato trepou a cruz, equilibrou-se nos braços da mesma, começou a roer as cordas, o tempo era curto, o oxigénio escapava-se dos pulmões do menino Deus de olhos azuis, tudo colidia, incluindo os flamingos que se alimentavam de prostitutas nos charcos de uma ilusão platónica.
Luísa abalroou nesse mesmo segundo Diana, abraçaram-se num orgasmo estelar, as gotas de chuva incendiaram-se, a floresta pegou fogo, as criaturas que a habitavam estremeceram em terror, morderam os espelhos que as seguravam ao plano corpóreo.
Jéssica, que seguia atrás da sua amiga de uma perpetuidade que nasceu antes do tempo, sentiu o calor de uma supernova trespassar-lhe o corpo, a roupa evaporou-se do corpo, sentiu a pele derreter, as omoplatas rebentaram. A aprendiz de anjo ganhara as suas asas.
— Um, dois, três, aumentem a potência, sete, oito…
— Doutor, não podemos.
— Treze, catorze, aumentem, já disse.
— O corpo dele não vai aguentar — a linha no monitor continuava reta, indicando um caminho veloz da morte de um Deus.
— Levanta-te André — o gigante negro sentia o calor das labaredas na lenha, ouvia a voz de Marcos, apoiou a mão numa brasa que lhe queimou a palma da mão. Ergueu-se num esgar de dor.
— Ódin! — Mariana sentia medo e calma no mesmo instante, sentia o calor vindo da base, as labaredas, via Rafael a erguer-se junto a André. — Se não conseguires, vai.
— Eu consigo Mariana — silvou o gato de volta, enquanto usava desesperadamente as garras, numa tentativa de romper as cordas.
— Bruxa, larga-me — ordenavam as chamas no seu abraço, ordenava Diana, sentindo o fogo vivo da antiga raposa, da antiga menina que morrera junto ao rio.
— Tu vais queimar uma criança para reviveres, e eu sou a bruxa? — Retorquia Luísa, que a enlaçava na amplitude da sua estrela.
Ambas dançavam um tango desenfreado pela floresta, atiçando chamas no temporal, um ciclone ardente que subia e descia dos céus.
— Ajuda-a, Jéssica — Era a voz de Mateus, melódica, protetora, a voz de um morto.
Jéssica levantou-se do lodo, as asas abriram-se, uma envergadura de quatro metros, ponta a ponta, os seus olhos faiscaram, na escuridão perpétua da dor de um Deus de olhos azuis.
Bateu as asas, os anjos voam, não voam? Ergueu-se do solo e direcionou-se para as entidades flamejantes.
Ao longe, num rio, um barco despedaçado foi atingido por um raio, o passado a entrar no passado, a penetrar fundo nas realidades da perceção.
Rafael pegou num toro de lenha, procurou na amplitude da sua visão o local onde se encontrava o rei louco, a seu lado, André atirava lenha para longe da fogueira, numa tentativa aflita de expurgar as labaredas.
— Na tua esquerda, Rafael.
Ele olhou, lá estavam as rosas-brancas e negras, as duas caudas da criação, enroladas uma na outra, a esmurrarem-se, morderem-se, salivarem. Espumarem raiva e ódio, cães danados da pradaria num confronto final.
Mirou e projetou o seu toro, a sua arma de arremesso em formato de árvores mortas, amendoins contra elefantes, falhou por milímetros.
— Ajuda-me! — suplicou o bombeiro. — Sozinho não consigo.
Uniram esforços numa tentativa desaforida para apagar o altar da corrupção.
No topo, o anjo viu uma aranha, um príncipe pútrido e uma fada, viu um rio e as danações do inferno, e todos os seres a afogarem-se em perfume de rosas decompostas.
— Luísa! — berrou para a sua amiga, acima do vendaval criado pelo bater das suas próprias asas, do seu coração. — Leva-a para o rio, afoga-a lá.
— Por que não tenho o desfibrilador preparado de novo?
Na sua mente em agonia, a criança viu a mão do pai levantá-lo do berço.
— Doutora? — Raúl estava impaciente — Como está a Yulia?
— Ainda em trabalho de parto, não se preocupe — Madalena mentia, e Raúl sabia, conseguia cheirar-lhe o aroma da inquietação na entoação da voz.
O fumo sufocava a filha de Gaia, ela sentia os olhos a arder, ouvia o rosnar do Deus dos gatos a seu lado, a esfrangalhar as cordas.
— Vai embora, Ódin, foge — tossiu a menina.
— Jamais, nunca fugi de nada, e agora então é que não fujo mesmo, não enquanto estiveres em perigo — A corda rompeu ante as suas garras, a sua espada aguçada. — A primeira já está, vamos à segunda.
— Cuidado — uma pilha de lenha incandescente derrocou sobre André, Rafael esquivou-se por sorte. — Estás bem?
André desviou alguns dos troncos, tinha escoriações na nuca, das quais o sangue escorria mesclado com a torrencial divina que sobre o mundo desmoronava.
— Vivo — exclamou.
Marcos e Felício seguiam a sua batalha eterna, o bom e o mau unificados numa noite que nunca terminou.
— Bruxaria! — gemia o vento.
— Quem diabos és tu? — Interrogava Felício, enquanto recebia o punho do seu espelho no peito, despedaçando-lhe as costelas.
— Eu sou tu, sou o que serias, o que poderias ter sido — respondia o fantasma, sentindo os dentes do seu irmão gémeo cravarem-se-lhe no pescoço, os caninos aguçados enterrarem-se fundo na jugular.
Num outro ponto, na floresta, Luísa bailava com Diana, em direção à estrada aquosa criada por dragões, o rio que todos limpa, deixando na passagem um incêndio de proporções bíblicas.
Jéssica tentava apagar as labaredas com as suas asas, mas apenas piorava, desistiu, cerrou-as para trás, entrou em voo picado na direção do fogo mortal, qual águia divina.
Colidiu com ambas, com a supernova, a globalidade do inferno a residir em dois corpos, dois seres que morreram e renasceram… labaredas da memória.
Despencaram dos céus, quais estrelas cadentes, caindo no abismo negro do rio.
Nos céus, o espelho estilhaçou, Ódin conseguiu romper a última corda, libertando dessa forma a filha de Gaia. Saltaram do topo do altar, mal tocando os toros que ardiam.
Nesse mesmo segundo, vidros despenharam da quebra das realidades, por um milésimo de segundo o sol brilhou do outro lado do abismo, a estrela escondida, decadente.
— Carreguem a porra do desfibrilador — exigia o doutor.
A velha entrou na divisão, a avó de um Deus. Pousou suavemente a mão nos ombros do doutor, aquele que miraculosamente garantira uma semana ao seu neto.
— Doutor — a voz cheirava a rezas e misericórdias. — Deixe-o ir.
— Mas?
— Ele precisa, deixe-o ir.
Rafael ajudou André, ergueram-se, ambos viram o tremeluzir do vazio.
Felício sentiu uma pontada de dor a queimar vindo do seu interior no momento em que a sua amante despencou no rio, tornou-se chama, enquanto ela desaparecia, enquanto Jéssica ascendia aos céus, ao palácio do divino criador, e a raposa se batizava uma vez mais nas águas que lhe haveram concedido vida.
— Que se passa? — indagava o fantasma, enquanto o seu espelho se tornava carvão.
E o mundo, piscou, tornou-se negro, cego, ausente, as cores transmutaram, repentinamente era a cidade, o Jardim, do céu choviam pétalas de rosas incendiadas, nas estradas navegavam flamingos cor-de-rosa.
No outro lado do espelho, as máquinas foram desligadas.
No bosque ficaram memórias e paladinos.
Carlos, não canso de falar o quanto admiro seus textos e vou sentir saudades quando acabar. O que as pessoas precisam fazer é comentarem. Isso ajuda muito o autor saber a direção a tomar no próximo capítulo. Eu mesmo comento pouco, mas envio muitos áudios para o Carlos. Parabéns meu amigo! Vai ser um livro para marcar a literatura como há muito não acontece!
Não percam, leiam, escutem, comentem.
É um orgulho estar aqui faz tanto tempo, acredito ter um livro coeso, falta só já um capítulo... E admitam... Vão sentir